Ivana Patrícia de Paula, Julia de Baére C. D’albuquerque e Paula Ferro Costa de Sousa

A desigualdade racial é um fenômeno histórico e estrutural que permeia várias dimensões da sociedade brasileira, incluindo o sistema de justiça. A realidade vivenciada ainda está longe da concretização material de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consistente na promoção do bem comum, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Com vistas a mitigar essa situação que tanto nos aflige como cidadãos, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial criado recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça, através da Resolução CNJ 598/2024, emerge como um instrumento essencial para garantir a equidade no julgamento de processos no âmbito do Poder Judiciário, na linha do que prevê o Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial.
Referido instrumento tem como escopo garantir que o Judiciário “atue contra a reprodução do racismo, em suas distintas dimensões, considerando suas interseccionalidades com questões de gênero, sexualidade, idade, deficiência, orientação religiosa e origem”. Como enfatizou a integrante do Grupo de Trabalho[1] que originou o Protocolo, juíza Karen Luise Vilanova Batista de Souza, “[é] necessário garantir que todas as pessoas, independentemente de raça, possam ter pleno acesso à justiça e a um tratamento equitativo, condição indispensável para um desenvolvimento sustentável e que respeite a diversidade de nosso país”
A criação desse instrumento ganhou mais relevância com a internalização da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, ocorrida no início do ano de 2022 (Decreto nº 10.932/2022). Com esse normativo, passou a vigorar um novo marco constitucional de enfrentamento ao racismo e de promoção da equidade racial, sexual e social no país.
Além disso, contribui para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável preconizados pela Agenda 2030 das Nações Unidas.
Este artigo explora os fundamentos, os objetivos e a importância desse Protocolo, enfatizando a necessidade de sua adoção e aplicação efetiva, na medida em que se trata de um instrumento “que tem o potencial de impulsionar uma mudança de postura do Judiciário brasileiro no sentido de aplicar as normas considerando as dinâmicas das relações raciais que se inscrevem na formação social brasileira, um movimento que reflete o compromisso com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que zela pelo diálogo intercultural e pelo respeito irrestrito a todas as pessoas”.
O Contexto da Discriminação Racial no Sistema de Justiça
O Brasil é marcado por disparidades raciais significativas, refletidas nos índices de encarceramento, abordagens policiais, entre outros. Dados apontam que pessoas negras estão desproporcionalmente representadas nos presídios e são frequentemente vítimas de discriminação. Esse cenário evidencia a urgência de medidas que considerem as especificidades raciais nos processos judiciais.
Portanto, nos casos que envolvem pessoas marcadas por desigualdades estruturais, a instrução processual é importante para identificação e compreensão dos fatos e se as relações estão pautadas por dinâmicas raciais que possam afetar o julgamento. Os magistrados e outros profissionais envolvidos devem buscar o entendimento adequado das circunstâncias enfrentadas, considerando que essas experiências são únicas, decorrentes de um histórico de desumanização de pessoas negras. Nesse caso, a condição de pessoa negra deve ser considerada, impedindo que haja discriminação, desqualificação da palavra e, também, revitimização.
O que é o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial?
O Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial é um conjunto de diretrizes voltado para orientar magistrados e operadores do direito a incorporarem a análise racial em suas decisões e atos que venham a ser praticados. Ele parte do reconhecimento de que a neutralidade absoluta no julgamento é um mito, especialmente em uma sociedade marcada por desigualdades estruturais.
Importante destacar que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao aprovar oficialmente o Protocolo, reafirma seu compromisso com a promoção da equidade racial no Poder Judiciário, para que os julgamentos sejam verdadeiramente isentos de vieses e discriminações.
O documento está dividido em cinco partes. A primeira, apresenta princípios fundamentais e normativas nacionais e internacionais que norteiam o combate ao racismo. Na segunda, aborda conceitos como racismo estrutural, vieses implícitos e interseccionalidades, contextualizando o problema com base em estudos acadêmicos. Na terceira, oferece orientações objetivas para aplicação em diferentes etapas processuais. A quarta parte, explora os impactos do racismo em áreas do Direito e a quinta parte, traz estratégias de implementação, incluindo capacitação contínua de servidores do Judiciário e monitoramento dos resultados.
Objetivos e importância de implementação do Protocolo
O Pacto Nacional tem por objetivo central o fortalecimento de uma cultura pela equidade racial no Poder Judiciário, a partir de um agir consciente, intencional e responsável. O Protocolo surge, portanto, como instrumento normativo e operacional fundamental para alcançar os objetivos traçados pelo Pacto, com vistas a uniformizar e orientar as práticas judiciais, administrativas e processuais, garantindo a implementação de ações que promovam a equidade racial em todos os níveis do Judiciário.
Nessa ótica, são objetivos do Protocolo:
fomentar o acesso à justiça, aprimorando o tratamento às(aos) jurisdicionadas(os);
incentivar a magistratura a refletir sobre as suas preconcepções e ampliar o espaço de escuta qualificada;
assegurar que todos os relatos do processo sejam considerados com igual relevância e peso na conformação do entendimento dos fatos;
otimizar a prestação jurisdicional;
despertar a percepção de julgadores(as) para as condições materiais e simbólicas que incidem sobre os fatos e conflitos em análise;
expandir os parâmetros normativos das decisões judiciais, com o recurso às legislações internas e internacionais de promoção da equidade racial;
ampliar o compromisso com uma comunicação que promova a exata compreensão dos efeitos de cada etapa do processo para todas as pessoas envolvidas;
ampliar a perspectiva de julgadores(as), ressaltando o dever do Estado de garantir direitos e aplicar mecanismos necessários para erradicar todas as formas de violações de direitos.
Como se vê, a adoção do Protocolo representa um passo significativo na promoção de um sistema de justiça mais igualitário. Ela também reforça o compromisso do Judiciário com os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da vedação à discriminação. Além disso, a incorporação da perspectiva racial nas decisões judiciais contribui para o combate ao racismo estrutural e institucional, reconhecendo e enfrentando suas manifestações no âmbito jurídico.
Para ampliar o acesso e a transparência, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial deve estar disponível ao público por meio de QR Codes, cards eletrônicos e links acessíveis. Essa medida visa facilitar sua consulta e disseminação, promovendo maior engajamento e compreensão sobre seu conteúdo.
Embora o protocolo seja uma iniciativa fundamental, sua efetividade depende de diversos fatores:
Capacitação Contínua: É essencial que magistrados e todo corpo funcional do Poder Judiciário, incluindo as Cortes Superiores, recebam formação adequada sobre múltiplas formas de racismo, discriminação e injúria racial;
Estudos e Pesquisas: Tais estudos devem ser capazes de proporcionar análises críticas e com base em evidências, com perspectiva interseccional de raça, gênero, classe etc. sobre a questão do racismo e o seu enfrentamento;
Monitoramento e Avaliação: É necessário acompanhar a aplicação do protocolo para garantir sua eficácia, inclusive pelos órgãos correicionais;
Mudança Cultural: A adoção do protocolo requer uma transformação nas práticas institucionais e na mentalidade dos operadores do sistema de justiça.
Como se verifica, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial é uma resposta necessária e urgente para os desafios impostos pelo racismo estrutural e institucional no Brasil. Sua implementação pode contribuir para a construção de um sistema de justiça mais inclusivo e equitativo, alinhado aos valores democráticos e às demandas por justiça social, especialmente no que tange ao combate permanente do racismo nas relações humanas.
[1] Integram o Grupo Trabalho: Art. 2º O Grupo de Trabalho terá a seguinte composição:
I – João Paulo Santos Schoucair, Conselheiro do CNJ, que o coordenará;
II – Adriana Alves dos Santos Cruz, Secretária-Geral do CNJ;
III – Karen Luise Vilanova Batista de Souza, Juíza Auxiliar da Presidência do CNJ;
IV – Wanessa Mendes de Araújo, Juíza Auxiliar da Presidência do CNJ;
V – Edinaldo César Santos Junior, Juiz Auxiliar da Presidência do CNJ;
VI – Roger Raupp Rios, Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região;
VIII – Thula Rafaela de Oliveira Pires, Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio);
IX – Wallace de Almeida Corbo, Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ);
X – Isadora Brandão Araújo da Silva, Defensora Pública do Estado de São Paulo;
XI – Eliane Cristina Pinto Moreira Folhes, Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará;
XII – Julio José Araújo Junior, Procurador da República do Estado do Rio de Janeiro;
XIV – Natália Albuquerque Dino de Castro e Costa, Servidora do CNJ;
XV – Ivoney Severina de Melo Pereira do Nascimento, Servidora do CNJ;
XVI – Roberta Vieira, Roberta Liana Vieira, Servidora e Coordenadora em Formação e aperfeiçoamento jurídico da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região;
XVII – Luiz Guilherme da Costa Wagner Júnior, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. (incluído pela Portaria n. 206, de 12.6.2024)
XVIII – Mara Lina Silva do Carmo, Juíza Federal do Tribunal Regional Federal da 6ª Região; (incluído pela Portaria n. 332, de 2.10.2024)
XIX – Fábio Francisco Esteves, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. (incluído pela Portaria n. 332, de 2.10.2024)
Comments